Brasileiros recriam 'minicérebros' com variante genética de Neandertal e revelam implicações para a origem do autismo — Tismoo

Brasileiros recriam ‘minicérebros’ com variante genética de Neandertal e revelam implicações para a origem do autismo

Combinando edição de genoma e organoides cerebrais, a equipe de Muotri pretende desvendar uma questão fundamental da espécie humana: o que nos faz únicos?

Dr. Alysson R. Muotri, Ph.D., professor da faculdade de medicina, diretor do Programa de Células-Tronco da Universidade da Califórnia (EUA) e sócio fundador da Tismoo, recriou organoides cerebrais contendo material genético de Neandertais na tentativa de compreender como surgiu a capacidade cognitiva distinta de nossa espécie. O trabalho, publicado nesta quinta (11.fev.2021) na renomada revista científica Science, utilizou edição de genoma (com CRISPR-Cas9) e também ajuda a entender as bases evolucionárias e neurológicas do autismo.

Organoides cerebrais, ou minicérebros, são estruturas celulares em miniatura criadas a partir de células-tronco pluripotentes que reproduzem, em parte, a estrutura e funcionalidade do cérebro humano em desenvolvimento. Muotri já havia utilizado esses minicérebros para desvendar a contribuição genética do autismo e outras doenças neurológicas, e para testar novos medicamentos. Junto com colegas brasileiros, Muotri também já havia feito uso dos minicérebros para mostrar a relação causal do vírus da Zika e o surto de microcefalia no Brasil em 2015.

Alysson Muotri com 'minicérebros', organoides cerebrais — TismooNeandertais e Denisovans

Usando uma nova versão de minicérebros funcionais, capazes de gerar sofisticadas redes neurais com oscilações semelhantes ao cérebro humano, o grupo de Muotri mostra pela primeira vez na história a reconstrução de minicérebros com variantes genéticas de espécies humanas extintas, como os Neandertais e Denisovans. 

“No passado, já havíamos comparado organoides cerebrais de humanos com de outros primatas, como o chimpanzé. No entanto, para entender as origens do cérebro moderno, precisaríamos compará-los com o dos nossos primos evolutivos mais próximos, como os Neandertais”, explica Muotri.

Há milhares de anos

Humanos modernos e os Neandertais se separaram em duas linhagens, cerca de 400 mil anos atrás. Nossos ancestrais diretos ficaram na África, enquanto que os Neandertais migraram para o norte europeu. Vestígios arqueológicos de  aproximadamente 60 mil anos atrás sugerem que os nossos ancestrais finalmente saíram da África em direção à Europa. Foi nesse momento em que as duas espécies coexistiram. Evidências genéticas recentes mostram que os dois grupos tiveram relações sexuais, mas a natureza desses encontros ainda é um mistério. O fato é que os Neandertais acabaram extintos logo após esse contato com nossa espécie. As causas da extinção dos Neandertais é motivo de muita especulação.

Tudo que sabemos dos Neandertais vem do estudo de fósseis e sítios arqueológicos. Evidências arqueológicas mostraram que os Neandertais costumavam enterrar seus mortos, produziam ferramentas e enfeites rudimentares, sugerindo um certo pensamento abstrato e simbólico. Até evidências artísticas foram atribuídas aos Neandertais, mas isso ainda é alvo de muita controvérsia. Do ponto de vista neurológico, sabemos que tinham o volume cerebral semelhante aos humanos modernos, com pequenas diferenças estruturais. O material genético, também extraído de fósseis, foi decodificado em 2010. Dos Denisovans sabemos menos ainda, pois as evidências arqueológicas são praticamente inexistentes. Tudo que sabemos dos Denisovans vem apenas de genomas encontrados em pedaços de ossos fossilizados.

 

Seleção natural

Ao comparar o genoma dos Neandertais e Denisovans com os de humanos modernos, Muotri notou diversas diferenças. Certas regiões do genoma ainda existem na população de hoje, enquanto outros fragmentos foram eliminados pela seleção natural, possivelmente por causa de alguma desvantagem adaptativa, seja na saúde, fertilidade, aparência ou cognição.

“Nosso grupo usou ferramentas genômicas para alinhar genomas dessas espécies humanas extintas e descobrir quais genes seriam únicos e não mais presentes nas atuais populações humanas. Depois, selecionamos genes que eram ativos durante o desenvolvimento neural e que estavam relacionados a doenças neurológicas. Usamos essa informação para alterar o genoma de células-tronco pluripotentes humanas e então criar organoides cerebrais (também chamados de minicérebros) ‘arquealizados’”, explica Muotri.

NOVA1

O gene escolhido é conhecido por NOVA1, um regulador mestre de outras centenas de genes durante o neurodesenvolvimento. Interessante notar que as vias controladas pelo NOVA1 já foram implicadas em autismo e esquizofrenia, ressaltando a importância deste gene.

No estudo, foi fundamental o uso de algoritmos de bioinformática para garantir que a técnica CRISPR introduzisse corretamente mutações genéticas no gene NOVA1 do genoma das células, mas sem a inserção de mutações indesejadas (chamadas de off-target) que poderiam comprometer o estudo. “Desta forma, a partir do sequenciamento do genoma das células, conseguimos comprovar que as mutações do gene NOVA1 do genoma dos neandertais foram introduzidas com sucesso no genoma de células humanas e sem a ocorrência de mutações indesejáveis” disse o pesquisador Roberto Herai, sócio fundador da Tismoo,  colaborador do estudo e coordenador do Laboratório de Bioinformática da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. “Essa pesquisa multicêntrica internacional também permitiu demonstrar a alta capacidade de laboratórios científicos 100% brasileiros e com grande domínio da área de bioinformática utilizando técnicas de engenharia genética como CRISPR”, finalizou Herai.

Autismo

Os resultados são impressionantes. Ao olhar para a expressão gênica durante o neurodesenvolvimento, o grupo notou alterações significativas entre os minicérebros “arquealizados” e os humanos. Em nível celular, as alterações foram ainda mais claras: alterações no padrão migratório das células progenitoras levou a formação de estruturas globulares distintas nos minicérebros carregando as variantes arcaicas. Essas alterações celulares e moleculares tiveram um impacto na formação das redes neurais: a atividade neuronal foi significativamente alterada em minicérebros com as variantes ancestrais. Isso seria uma evidência de que, possivelmente, seríamos cognitivamente distintos das outras espécies. Quais seriam essas diferenças ainda é um mistério, mas Muotri especula: “As redes neurais se comportam de forma semelhante a algumas condições neurológicas que modelamos no laboratório, como subtipos de autismo. Essa comparação pode sugerir que nossos ancestrais tivessem habilidades extraordinárias, ou dificuldades, por exemplo, em comunicação e socialização”, o que ajuda a entender as bases evolucionárias e neurológicas do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Apesar das limitações intrínsecas do modelo de minicérebro (que não pode ainda ser comparado com o cérebro adulto), Muotri observa semelhanças em como alterações sutis no neurodesenvolvimento podem afetar a funcionalidade do cérebro humano. Junto com um time multidisciplinar, Muotri criou o Centro de Arquealização (https://archc.ucsd.edu) que busca identificar como outros genes também podem ter participado da evolução do cérebro humano.  

Os resultados com os organoides cerebrais podem revelar detalhes sobre a capacidade cognitiva que resultou no sucesso da espécie humana moderna e fracasso evolutivo dos Neandertais. Um grande passo para responder uma das perguntas mais fundamentais da história humana.

CRISPR

A técnica utilizada para edição do genoma foi com a enzima CRISPR-Cas9 (do inglês: Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats — em português: repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas), uma tecnologia que permite copiar e colar um pedaço do DNA. Para quem quiser entender a técnica, há um vídeo do canal Ciência Traduzida (quem quiser ver uma versão reduzida, assista de 3:12s a 5:50s) e o site G1 também fez um infográfico bem interessante explicando a técnica.

O estudo completo pode ser visto em https://science.sciencemag.org/content/371/6530/eaax2537.full — e também foi destaque em reportagem do jornal The New York Times (EUA).

Vídeo de créditos

No vídeo abaixo, o neurocientista Alysson Muotri nomeia mais brasileiros que participaram do estudo, destacando o principal autor, Cléber  Trujillo, e outros brasileiros. E ainda aproveita para homenagear quem Muotri atribui ser o responsável por toda sua curiosidade e criatividade: Mauricio de Sousa, com seus personagens como o cientista Franjinha, o Astronauta, o homem-das-cavernas Piteco e o André, o personagem autista da Turma da Mônica.

Assista ao vídeo no Facebook, em: https://www.facebook.com/muotri/videos/208308221003959/.

Vídeo de créditos de Alysson Muotri e homenagem a Mauricio de Sousa — Tismoo

 

[Atualizado em 12/02/2021 com vídeo de créditos]